Meio que Belchior
Fala por todos nós,
Com os nós na garganta
Da condição inata
Dos nossos sonhos
Latino-americanos.
Sangra por nós
Em nossos desencantos.
Chora por nós
Em nossos lamentos.
De jovens que éramos,
De jovens que somos,
Que perpetuamos seu canto,
Enquanto podemos
E nos sentimos humanos.
Ainda há pouco Começou O concerto das cigarras No vazio da tarde. É aviso de estio. Desde menino Sei disso E fico expectante De que se cumpra o rito De que, se a cigarra cicia, Se espanta o frio Se inaugura a secura. E ela, doidivanas, Com sua voz estridente Lança o desafio À formiga Pela folgança Ou pelo fastio: O que der mais prazer À sobrevivência.
(Dedicado a Carlos José Figueiredo, que sugeriu o assunto.)
Por volta de 1964, meu pai fechou sua pequena venda de secos e molhados, vendeu nossa casa, na vila de Carabuçu, e foi com a família para a sede do município. Na verdade, a sede do município é, em alma, uma cidade composta por duas, divididas por um rio, separadas em estados distintos, mas que formam uma mesma comunidade. São elas Bom Jesus do Itabapoana e Bom Jesus do Norte, a primeira no norte do Rio de Janeiro e a segunda no sul do Espírito Santo.
Como a cidade capixaba é menor, menos populosa e de atividade econômica mais simples, o custo de vida relativamente a moradia ali é um pouco mais baixo do que na do lado fluminense.
Então meu pai optou por morar em Bom Jesus do Norte, até porque seu novo emprego, na cooperativa de laticínios, era justamente nessa cidade.
Nunca ouvi de qualquer bonjesuense, de um ou de outro lado do rio Itabapoana, questionamento sobre a denominação do município espírito-santense, embora o tenha ouvido de forasteiros.
A primeira vez em que tive a atenção chamada pela possível estranheza do nome foi em 1962, numa excursão que o Colégio Cel. Antônio Honório fez a Vitória. Na visita dos alunos à Assembleia Legislativa, ouvimos de um deputado sua intenção de propor a mudança da denominação do município, em vista da incongruência nela contida. Segundo seu entendimento, como pode ser Bom Jesus do Norte, se fica no extremo sul do Espírito Santo?
Só sei que jamais houve alteração do nome da cidade.
No entanto é possível explicá-lo.
A cidade fluminense nasceu Bom Jesus, em referência ao lugarejo mineiro de Bom Jesus da Vista Alegre, terra natal dos fundadores do povoado que gerou a cidade de hoje. À denominação foi acrescido posteriormente o nome do rio que corta suas terras, na divisa com o Espírito Santo. Já a localidade além da margem do rio, fundada pouco tempo depois, nasceu Bom Jesus do Jardim, quando foi elevada à categoria de distrito de São José do Calçado. Porém, em 1938, passou a denominar-se Bom Jesus do Norte, por se localizar ao norte do rio, ao norte da outra Bom Jesus, ainda que esteja no extremo sul do estado capixaba. Desde 1964 ela se emancipou de São José do Calçado, mantendo o nome no novo município.
Deste ponto de vista, não há nenhuma incongruência, já que a referência é feita ao rio Itabapoana, que divide os dois estados por cerca de duzentos e cinquenta quilômetros, até desaguar no oceano Atlântico.
Aí está a explicação de por que, mesmo estando no sul, é do norte.
O rio Itabapoana, num fim de tarde. À esquerda, RJ; à direita, ES.
Preciso confessar
Um pouco constrangido
Que tenho passado
Bons bocados,
Ainda que tenha cortado
O açúcar
Da minha vida.
Tenho visto ocasos,
Tenho ouvido
O barulho das ondas
A quebrar aqui em frente.
Tenho sentido aromas,
Curtido sons saudáveis
De rock progressivo.
E sentido frio
Que espanto com conhaque,
E certo calor escaldante
Sob ar refrigerado.
E provado
Amores desmesurados,
Amizades vivas,
Que empurram as vicissitudes,
As contrariedades
Para o passivo,
E esperando tranquilo
O futuro inominado
A se insinuar,
Logo ali à minha frente,
Preciso, mas dissimulado.
Leve A folha velha Sob suave brisa Baila em zigue-zague Antes de cair solitária Sobre a lâmina d’água Que corre ínfima Ao lado da calçada. E vai assim extinta Do verde que exibia Envaidecida Há pouco ainda Na amendoeira frondosa Em frente à praia Até sumir na grelha Boca de lobo do esgoto Para o seu destino. Assim como nós outros.
Quero andar sem pressa Por tuas ruas antigas Comer teus sabores Gastar meus olhos nos teus encantos Sorver em goles Teus espíritos tantos Sofrer as dores dos anos Que escorrem pelas paredes brancas De tuas casas de outrora Orar minhas orações agnósticas Em tuas igrejas e capelas Pisar tuas pretéridas pedras Encontrar por fim Minha alma inexistente Sob o manto de tua história Oh, Tiradentes!
As duas amigas saíam do trabalho às dezenove horas. O ponto inicial da linha Praça XV-Vilar dos Teles ficava a duzentos metros, se tanto, de seu local de trabalho, na Rua Dom Manuel, no centro do Rio de Janeiro. Elas não conseguiam embarcar no ônibus das dezoito e quarenta e cinco, mas pegavam o próximo, das dezenove e quinze. Isso era a rotina.
Aquele era o horário fatídico: sempre coincidia ser Neném o motorista, que chegava de Vilar dos Teles, voando baixo, a fim de cumprir a meta da empresa de transportar tantos passageiros por viagem, versus o tempo determinado para o trajeto. É claro que Neném aproveitava para dar vazão aos seus discutíveis instintos de piloto de Fórmula 1. E as amigas, que sempre pegavam seu ônibus, sabiam disso. Aliás, temiam isso!
Era mal o ônibus sair do terminal ao lado da antiga Praça Rui Barbosa, para as atribulações começarem.
Invariavelmente iam no primeiro banco, uma ao lado da outra, para serem testemunhas de uma possível catástrofe rodoviária, acidentarem-se juntas, talvez até coisa pior, mas sempre com o auxílio da fraternidade que nutriam mutuamente.
Tão logo Neném adentrava seu ônibus na Avenida Brasil, aquela artéria pulsante de tráfego a qualquer hora do dia, ele aplicava seu pesado pé sobre o acelerador do veículo que, de um simples coletivo da Auto Expresso Meritiense, se transformava num bólido infernal, a comer asfalto; a ziguezaguear entre as faixas, conforme o parceiro adiante estivesse em velocidade civilizada; a ultrapassar os retardatários, aqueles que obedeciam o limite de velocidade da via, num tempo em que os radares ainda não existiam.
As duas amigas, quase sempre, se davam as mãos e fechavam os olhos durante as manobras mais radicais. Muitas vezes, por ser Isabel a mais religiosa, lançavam mão de preces, pedidos e promessas aos santos da devoção. Ou não! Nessa hora, qualquer santo que atendesse seria bem-vindo. Lu resolvia acompanhar a amiga nas invocações, em voz bem baixinha, a fim de não atiçar ainda mais os hormônios da velocidade de que Neném parecia possuído. Assim só os santos, com seus ouvidos sensíveis às agruras dos devotos, seriam capazes de captar o desespero em que as amigas viajavam.
Nesses momentos, o semblante de Neném se transtornava: olhos injetados, rictos nas bochechas, e os nervos e músculos dos braços vibrando a cada manobra, a cada negaça na direção daquele corpo celeste baixado na avenida, sob sua direção. No estandarte pendurado atrás da cadeira do motorista, com um São Cristóvão a carregar o Menino Jesus às costas, estava bordada com capricho, em fios vermelhos, a frase mentirosa: Dirigido por mim, guiado por Deus. As amigas tinham certeza de que o Coisa-ruim era quem comandava as ações.
A piorar a situação, aquele cenário em que se desenrolavam as ações, Neném apagava as luzes do salão do coletivo. O breu interno contrastava com o exterior, que parecia uma sucessão de pontos de luz a correrem desatinadamente em direção contrária. Era como um túnel aterrorizante, a levar seus ocupantes para lugar incerto, não sabido e sem volta. Lu só não desmaiava, para não deixar a amiga sozinha. Mas sua vontade era percorrer todo o trajeto fora de seu juízo, alheada da realidade, sem perceber nada.
Nem mesmo a cobradora, pobre parceira diária do motorista, seguia tranquila. Não era incomum vê-la traçar no rosto o sinal da cruz repetidas vezes, como a pedir proteção contra as peripécias do alucinado.
As amigas, por outro lado, desconheciam se os demais passageiros sentiam o mesmo pavor por que passavam. Alguns, talvez desprovidos de sistema nervoso central, periférico e adjacente, dormiam de babar na gola da camisa. Assim que passavam a primeira curva do Caju, ali onde conflui a rua do conjunto de cemitérios, provavelmente eles só acordariam no ponto final, quando a pressão dos freios, acionados com vontade, faziam o estardalhaço de sempre: Tchu! Tchuu! Tchuuuuuu!
E Neném pulava de seu posto de piloto, um simulacro de cockpit, lépido e fagueiro, com um sorriso de lado a lado naquela cara bexiguenta, saudando os passageiros de sua última viagem do dia. Isabel e Lu, ainda com as pernas trêmulas pelo nervosismo, desciam do coletivo, segurando-se nos balaústres, até enfim pousar seus pés em terra firme e despedir-se, com alívio, daquele motorista insano, que certamente as conduziria em outras viagens de volta a casa, ao final de mais um dia de trabalho. Elas apenas esperavam que todo o sofrimento fosse posto em seu crédito, quando fossem ajustar contas lá em cima. Os santos lhes seriam testemunhas de defesa.
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