Naquele horário, o motorista era sempre o Neném.
As duas amigas saíam do trabalho às dezenove horas. O ponto inicial da linha Praça XV-Vilar dos Teles ficava a duzentos metros, se tanto, de seu local de trabalho, na Rua Dom Manuel, no centro do Rio de Janeiro. Elas não conseguiam embarcar no ônibus das dezoito e quarenta e cinco, mas pegavam o próximo, das dezenove e quinze. Isso era a rotina.
Aquele era o horário fatídico: sempre coincidia ser Neném o motorista, que chegava de Vilar dos Teles, voando baixo, a fim de cumprir a meta da empresa de transportar tantos passageiros por viagem, versus o tempo determinado para o trajeto. É claro que Neném aproveitava para dar vazão aos seus discutíveis instintos de piloto de Fórmula 1. E as amigas, que sempre pegavam seu ônibus, sabiam disso. Aliás, temiam isso!
Era mal o ônibus sair do terminal ao lado da antiga Praça Rui Barbosa, para as atribulações começarem.
Invariavelmente iam no primeiro banco, uma ao lado da outra, para serem testemunhas de uma possível catástrofe rodoviária, acidentarem-se juntas, talvez até coisa pior, mas sempre com o auxílio da fraternidade que nutriam mutuamente.
Tão logo Neném adentrava seu ônibus na Avenida Brasil, aquela artéria pulsante de tráfego a qualquer hora do dia, ele aplicava seu pesado pé sobre o acelerador do veículo que, de um simples coletivo da Auto Expresso Meritiense, se transformava num bólido infernal, a comer asfalto; a ziguezaguear entre as faixas, conforme o parceiro adiante estivesse em velocidade civilizada; a ultrapassar os retardatários, aqueles que obedeciam o limite de velocidade da via, num tempo em que os radares ainda não existiam.
As duas amigas, quase sempre, se davam as mãos e fechavam os olhos durante as manobras mais radicais. Muitas vezes, por ser Isabel a mais religiosa, lançavam mão de preces, pedidos e promessas aos santos da devoção. Ou não! Nessa hora, qualquer santo que atendesse seria bem-vindo. Lu resolvia acompanhar a amiga nas invocações, em voz bem baixinha, a fim de não atiçar ainda mais os hormônios da velocidade de que Neném parecia possuído. Assim só os santos, com seus ouvidos sensíveis às agruras dos devotos, seriam capazes de captar o desespero em que as amigas viajavam.
Nesses momentos, o semblante de Neném se transtornava: olhos injetados, rictos nas bochechas, e os nervos e músculos dos braços vibrando a cada manobra, a cada negaça na direção daquele corpo celeste baixado na avenida, sob sua direção. No estandarte pendurado atrás da cadeira do motorista, com um São Cristóvão a carregar o Menino Jesus às costas, estava bordada com capricho, em fios vermelhos, a frase mentirosa: Dirigido por mim, guiado por Deus. As amigas tinham certeza de que o Coisa-ruim era quem comandava as ações.
A piorar a situação, aquele cenário em que se desenrolavam as ações, Neném apagava as luzes do salão do coletivo. O breu interno contrastava com o exterior, que parecia uma sucessão de pontos de luz a correrem desatinadamente em direção contrária. Era como um túnel aterrorizante, a levar seus ocupantes para lugar incerto, não sabido e sem volta. Lu só não desmaiava, para não deixar a amiga sozinha. Mas sua vontade era percorrer todo o trajeto fora de seu juízo, alheada da realidade, sem perceber nada.
Nem mesmo a cobradora, pobre parceira diária do motorista, seguia tranquila. Não era incomum vê-la traçar no rosto o sinal da cruz repetidas vezes, como a pedir proteção contra as peripécias do alucinado.
As amigas, por outro lado, desconheciam se os demais passageiros sentiam o mesmo pavor por que passavam. Alguns, talvez desprovidos de sistema nervoso central, periférico e adjacente, dormiam de babar na gola da camisa. Assim que passavam a primeira curva do Caju, ali onde conflui a rua do conjunto de cemitérios, provavelmente eles só acordariam no ponto final, quando a pressão dos freios, acionados com vontade, faziam o estardalhaço de sempre: Tchu! Tchuu! Tchuuuuuu!
E Neném pulava de seu posto de piloto, um simulacro de cockpit, lépido e fagueiro, com um sorriso de lado a lado naquela cara bexiguenta, saudando os passageiros de sua última viagem do dia. Isabel e Lu, ainda com as pernas trêmulas pelo nervosismo, desciam do coletivo, segurando-se nos balaústres, até enfim pousar seus pés em terra firme e despedir-se, com alívio, daquele motorista insano, que certamente as conduziria em outras viagens de volta a casa, ao final de mais um dia de trabalho. Elas apenas esperavam que todo o sofrimento fosse posto em seu crédito, quando fossem ajustar contas lá em cima. Os santos lhes seriam testemunhas de defesa.

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