Temos na casa de nossos pais uma antiga foto em preto e branco do time do Liberdade que, à época, se chamava Comercial. Nela, dentre os jogadores, aparecem meu pai, Argemiro, então considerado um bom ponta-esquerda; meu tio-avô Nalim, também hábil jogador; o Creval Mestre, goleiro com pinta do russo Yashin; e o meu avô paterno, Chico Albino, dentre os cartolas, elegantemente trajado para a ocasião.
Não sei em que ano se deu a mudança do nome, pois, desde que me entendi por gente, lá pelos idos de 1950, o clube já tinha o nome atual. Tanto que, na segunda série do antigo curso primário, aos nove anos, fiz o meu primeiro poema – era o dever de casa -, que tratava justamente do jogo daquele fim de semana entre o meu time e o Ordem e Progresso, de Bom Jesus do Norte, cujas primeiras estrofes, corrigidas pela querida professora Maria Amélia Figueiredo, ainda tenho na memória:
Os canarinhos entraram em campo
Contentes e animados
Com a ordem do técnico
O Liberdade entra no gramado.
Logo foi tirado o toss
O Liberdade ganhou
Progresso deu a saída
Progresso foi vencedor.
Por isso é que posso afirmar que o Liberdade Esporte Clube foi uma das minhas primeiras paixões na vida. É claro que eu tinha outras também: algumas coleguinhas do Grupo Escolar Marcílio Dias, que me encantavam com sua beleza. Mas essa era outra qualidade de paixão, diferente, que exigia retorno. A paixão pelo LEC era de mão única. O time nem precisava vencer, para que eu o amasse.
E, como toda paixão, me exigia sacrifícios. Uma vez por mês, no primeiro domingo, o Padre Francisco Apoliano vinha à vila celebrar a missa, que invariavelmente coincidia com, pelo menos, o primeiro tempo das partidas.
Caso coincidissem missa e jogo pelo campeonato bonjesuense, eu me mortificava ainda mais durante a obrigação religiosa, na qual rezava para que ainda conseguisse, após o Ite! Missa est., as derradeiras palavras do padre, pegar uma parte do segundo tempo. Por aquela altura, as missas eram celebradas em latim. Mas o sentido das palavras já conhecia de muito: Ide! A missa terminou. E partia correndo para o estádio.
Por essa época, em minha percepção de menino, o Liberdade tinha uma equipe hábil e poderosa, ainda que eventualmente perdesse. E, a cada jogo no Estádio Doutor César Ferolla, nome do médico benemérito que doou o terreno onde se construiu o campo de jogo, eu estava lá, inclusive dentro do vestiário, para assistir à preparação dos craques, à preleção do técnico João Coleto e também aproveitar para sentir o odor inebriante da cânfora misturada ao óleo com que os jogadores untavam as pernas, antes de adentrar o gramado.
Então corria a subir o barranco, espécie de arquibancada rústica, numa das margens do campo. Ali me sentava ao lado do meu pai, sob um pequeno arbusto que gerava uma minúscula sombra.
Quando a equipe entrava no gramado, era uma euforia. Vinham eles com a tradicional camisa de listras brancas e azuis, em fila, até o círculo central.
Lembro-me de muitos deles.
Reginaldo, o pequeno goleiro carioca que se apaixonou pela vila e morreu tragicamente nas águas do Itabapoana. Um gigante sob a baliza, malgrado seu pequeno porte. Depois veio Bié, deslocado da ponta esquerda para o gol, posteriormente substituído pelo Cocote, um dos mais longevos na posição.
Havia o Paulinho Sucanga, irmão da minha mãe, um dos maiores jogadores que vi jogar. Baixinho, com um pequeno problema congênito no quadril que o fazia manquitolar, era um portento na posição de beque central. Impressionava ver sua habilidade, sua desenvoltura com a bola. Em certo jogo, durante a cobrança de escanteio pelo time adversário, ele dominou a bola com a cabeça e saiu da área, levando-a assim, com cabeceios, até passar a um companheiro.
Dividia a zaga com ele, outro baixinho habilidoso, o Durvalzinho Assis. Os dois formavam a mais improvável dupla de zaga, se analisássemos apenas sob o aspecto físico. Algumas vezes, atuava como zagueiro o Filhinho Schuab, que tinha o apelido de Carijó, pela profusão de sardas no rosto, e se vangloriava de sua filosofia de jogo: Por mim, ou passa a bola, ou passa o adversário; os dois juntos, nunca! E dava gargalhadas, ao dizer isso. Outro que substituiu o Filhinho foi o Todinho Quintal, um pouco mais novo que o Paulinho, mas alto o bastante para proteger a área das bolas levantadas. Enquanto Filhinho era vigoroso e botineiro, Todinho tinha mais habilidade e categoria.
O meio-campo contava com dois jogadores diversos, porém com muita eficiência em seus estilos. O Helvécio Portugal, meu primo, praticava um toque refinado e uma fleugma britânica para o jogo. Antecipava o jeito de jogar do Gerson, o Canhotinha de Ouro. Já o Elias Pelanquinha, outro primo, oposto ao Helvécio, porquanto jogasse com vigor e com sangue nos olhos, era voluntarioso e briguento. Enquanto o primeiro arrumava o time no meio-campo e pouco subia ao ataque, o outro também partia em auxílio à conclusão das jogadas. Tempo depois eles foram substituídos por duas novas promessas do LEC: José Elias, irmão do Gonçalves, que atuava como zagueiro; e Adilson Zé Mané, também meu primo, mas um pouco mais velho que eu. Ambos jogadores de grande habilidade. Adilson, inclusive, foi levado para jogar no Unidos, de Itaperuna.
Neste setor, algumas vezes atuava o Ciloca Peçanha, que ganhou um segundo apelido, Pé Redondo, pelo formato arredondado dos pés que dificilmente encontravam chuteiras que os acomodassem. Por isso jogava sempre descalço.
Moreninho, o principal barbeiro da vila, também corria pela lateral direita, enquanto Anoredino Pé de Chumbo corria pela esquerda. Mas nem sempre estavam em todos os jogos. Já o Geraldinho, filho do Juca Jacó, mostrava suas habilidades tanto pela meia-direita, com a camisa 8, quanto pela meia-esquerda do campo, com a camisa 10, participando das ações de ataque.
Quando o Bié foi deslocado da ponta esquerda para o gol, após a morte do Reginaldo, Isaías Bonga, que também dava suas botinadas na lateral esquerda, foi ocupar aquele espaço e, com frequência, veloz como ele só, mas sem grandes habilidades, chegava ao fundo do campo para cruzar a redonda em direção à área.
Caso o ataque se desse pela direita, aí as coisas ficavam mais eficientes. Vislumbrava-se a possibilidade de gol. Lá estava o Cristhovinho Padilha, baixinho, arisco, veloz, a penetrar a zaga adversária, aonde quase sempre levava o desespero aos defensores com seus dribles.
Os gêmeos Adelson e Adilson Moulins marcaram época, por suas habilidades e deslocamentos velozes no ataque. O irmão mais velho, Dalzy, atuava no meio-campo com cadência e ritmo.
E, tanto vindo da esquerda, quanto da direita, a bola quase sempre encontrava dentro da área, disposto a enfiá-la nas redes, outro baixinho endiabrado, o Jadir Modesto, ou Jadir Bodinho, alcunha devida a seu cavanhaque minguado e seu bigode ralo.
Bodinho, inclusive, foi protagonista de uma das mais belas jogadas que aconteceram naquele campo.
A Portuguesa do Rio de Janeiro estava em excursão pelo Norte e Noroeste do estado, em amistosos preparatórios para o próximo campeonato carioca. E, por todos os lugares por que passara, venceu seus jogos. Até que chegou a Carabuçu.
Fazia um belo domingo de sol e calor. Os times entraram em campo com disposição para o jogo. Era um amistoso nem tão amigável assim. E seguia a partida emperrada no zero a zero, até que um cruzamento da esquerda encontra nosso ataque, ou melhor, Jadir Bodinho correndo em direção à defesa adversária. Nesse dia, eu via o jogo encostado à cerca interna, acompanhando o ataque do Liberdade. E fui testemunha ocular daquela pintura, que até hoje está gravada em minha memória. A bola veio quase à altura do Jadir Bodinho, que não era muito alto. Pois o endiabrado deu um pulo, que à época chamávamos sem-pulo, inacreditável para seu tamanho. Pois bem, ele deu um sem-pulo, jogando o corpo na horizontal e pegando a bola com o pé direito, numa chicotada fulminante, da entrada da grande área. A pelota estufou a rede à esquerda do goleiro, que nada pôde fazer. Ela entrou na região onde a coruja dorme, se é que me entendem. O LEC venceu a partida por 1×0. O delírio que tomou conta da grande torcida ali presente foi indescritível. Nosso time foi o único a vencer a Portuguesa em sua excursão por nossas bandas.
Posteriormente contaram que o dirigente do clube carioca, chefe da delegação, quis levar o Jadir Bodinho para a Ilha do Governador, sede da Portuguesa. Essas mesmas informações, agora maldosas e debochadas, garantiam que Jadir não quis ir, porque estava aprendendo o ofício de sapateiro com o Filhinho Gregório.
O Liberdade, anos depois, ganhou o campeonato da LBD, Liga Bonjesuense de Desportos. Mas eu já estava morando longe e não pude testemunhar essa glória. Contudo, isso, em hipótese nenhuma, fez com que eu me sentisse culpado por não estar presente. A vida nos conduz a caminhos inevitáveis, onde trafegamos nossa experiência, sem que possamos mudar seu rumo, conforme nossos desejos.
Agora, em fevereiro de 2022, o Liberdade Esporte Clube comemora oitenta e cinco anos, dez a mais que eu, que, em menino pequeno, ganhava uns trocados para gozar o extinto time adversário da vila, cujo modesto campo de jogo ficava nos pastos para além da ponte do Valão Liberdade: era o Palmeiras, nome dado em função de algumas dessas árvores próximas, mas que nós, torcedores do glorioso Esquadrão Alvianil, debochadamente chamávamos de Bostinha, por causa dos excrementos deixados pelo gado que aparava a grama da cancha espontaneamente. Rivalidade, aliás, que se perdeu no tempo.
Viva o Liberdade! Glória ao Liberdade!
Saint-Clair Machado de Mello
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(Agradeço ao meu irmão Gutenberg, que também brilhou com seu talento no futebol, as dicas importantes que refrescaram a minha memória.)
