FLAMENGO 0X2 BOTAFOGO

O jornalista Flávio Prado, em seu blog, desancou o Botafogo no jogo de ontem contra o Flamengo.  Em resumo, disse que o time jogou como equipe pequena, covarde, fechada na defesa e esperando pelo contra-ataque. Segundo ele, o famigerado placar moral deveria ser empate, para fazer justiça ao time da beira da lagoa, que jogou melhor.

Ele deve ter razões que desconheço. Entretanto, para um jornalista experiente como ele, é de se esperar que saiba que o futebol é o único esporte em que o time menor, mais fraco e de pior desempenho na partida é capaz de anular o time mais forte, melhor, mais rico, mais científico, que jogou superiormente bem, e ainda assim, contra todas as razões plausíveis, lhe enfiar goela abaixo – ou seria rede adentro? – dois gols trabalhados com perícia e arte futebolística.

Também vi um Reels de um jovem e apoplético torcedor flamenguista vociferando contra seu time, porque algum jogador ou dirigente – não sei precisar – atribuiu o péssimo desempenho da equipe ao calor, como já havia ocorrido antes em relação à altitude na Bolívia. E perguntava, aos berros, se os jogadores do Botafogo jogavam com uma nuvem sobre a cabeça a proteger-lhes, enquanto seus poupados jogadores jogavam com o sol na moleira. E xingou, reclamou, protestou tanto e tão veementemente, que tive receio de que o rapaz tivesse um troço.

A este torcedor, contudo, tenho de dar razão, senão, daqui a pouco, as condições naturais, além de altitude e calor, serão justificativas para pífias atuações das equipes. Imagino que no futuro, a esfericidade da bola, o tom do verde da grama e, até mesmo, a curvatura da Terra, quiçá a influência da Lua sobre as marés e as plantações, interferirão no resultado da partida.

Já meu amigo, botafoguense como eu e que não assistiu ao jogo, me disse que, vendo os melhores momentos depois, percebeu que nosso time tinha jogado menos que o adversário e dado sorte nos gols.

Argumentei com ele que a edição dos melhores momentos era francamente favorável ao Flamengo, para passar exatamente tal impressão e desmerecer a vitória do nosso time.

Por fim, aproveito para reclamar que os porteiros do meu condomínio não estão falando comigo. Todos urubulinos, que me zoaram antecipadamente. Vou esperar as dezenove horas, quando assumem os porteiros da noite, todos da Cachorrada.

No fundo, para tudo isso, as razões são bem simples: defendemos melhor, atacamos melhor e fizemos dois gols.  Botafogo 2×0 Flamengo.

Imagem colhida na Internet.

DECLARAÇÃO IRPF 2024

Já fiz a declaração
Nada tenho a declarar
Não vou me comprometer
Não quero me inculpar
O que tenho me pertence
Consegui por trabalhar
Ganhei dinheiro suado
E mereço desfrutar
Os impostos que paguei
No momento de comprar
São mais que suficientes
Pro governo abocanhar
E dos meus parcos proventos
Foi a parte do leão
É o que tenho a dizer
É minha declaração.

Imagem em br.freepik.com

ILUSÃO À TOA

Imagine uma ilusão à toa
Dessas muito boas
Que nos façam crer
Que a vida tem solução.

Imagine a frustração vindoura
Ao sentir que a ilusão à toa
Era meramente ilusão
E morreu no nascedouro
Dos sonhos sem solução.

Pôr do sol em Icaraí (foto do autor).

FIM DO MUNDO

Pus
Uma canção dos Beatles
A rodar
No velho toca-discos
Para esperar
O fim do mundo.
A canção chegou ao fim
O mundo não.
Ainda bem!
Amanhã
Volto a tocar o disco
E aguardar
Que o mundo acabe
Numa canção.

Imagem colhida na Internet.

LÁ NO MEU TEMPO

Lá no meu tempo, não havia tempo que se perdesse. Não havia contratempo. Tudo era feito no tempo certo, sem que houvesse desproveito. Nem de obrigações, nem de brincadeiras. Nem de sonhos, nem de choros.

No meu tempo, um tempo só retido pela memória, sem registros formais em palavras e imagens – tempo perdido num tempo analógico -, grupos de meninos vagavam pelas ruas da vila à procura de divertimento. Depois da escola, do dever de casa e dos pequenos afazeres que tínhamos de realizar, é claro.

Nesse tempo, meninos também tinham tarefas a cumprir. Meninas aprendiam com suas mães os cuidados com a casa.

E ficamos relutando com as lembranças, depois de tanto tempo escorrido, com aquilo que ficou marcado para sempre em nós, com a marca indelével da felicidade de ter sido criança numa pequena vila do interior.

Tempo de não acabar mais!

Cândido Portinari, Futebol (em pinturasdoauwe.com.br)

MUDANÇA

Toleba acabou de ajeitar as cangas, atou as brochas sob o pescoço dos bois e os chamou à lida. Com o garruchão comprido, de chocalho de anéis na ponteira, atingia desde a primeira junta até a terceira, a mais forte, que se prendia ao cabeçalho, junto à mesa.

Todos os bois tinham seus próprios nomes, por que eram chamados e pelos quais atendiam ao comando do carreiro. Na primeira junta, Dengoso e Bendito; na segunda, Fumaça e Malhado; na terceira, Maciste e Noturno, estes chamados bois de coice, os que sustentam o carro no nível e dão o primeiro arranque no momento da partida.

Toleba nunca entendera direito, por que o dono pusera esse nome esquisito no Maciste. Mesmo o seu apelido, Toleba, que ganhou na adolescência, ele entendia, já que era um homem atarracado, forte, massudo. Mas depois descobriu que fora por causa de um filme a que o patrão assistira no cinema do Zezete, quando menino, sobre um homem muito forte, capaz de mover com a força dos braços coisas descomunais, que dera o nome ao boi. Maciste, na verdade, era um boi dobrado, desses que metem medo por seu tamanho e musculatura, não fosse ele um animal manso e dolente, que não parecia em nada, no seu proceder, com o nome que o patrão lhe dera. Todos os outros nomes estavam completamente adaptados a cada animal. Era só vê-los e com eles conviver, para perceber que eram nomes justos. Por exemplo, o Noturno, de porte semelhante ao Maciste, era mais escuro que o Fumaça, que tinha o pelo cinza escuro, enquanto ele era de um pelo preto brilhante e bonito. Até o do Maciste, depois da explicação do patrão, passou a fazer sentido.

Nesse dia, Toleba ia fazer o carreto dos teréns do Manuel Firmino, que estava de mudança da Fazenda da Forquilha para a Fazenda da Boa Esperança, um pouco mais acima na serra do mesmo nome. É que o patrão tinha acabado de comprar esta última e resolveu deslocar o empregado para lá, onde ele assumiria a função de capataz. Manuel Firmino ia se mudar, coisa que não apreciava por ser um homem apegado a suas rotinas, mas ia com alegria, porque fora promovido, como recompensa por tantos anos de trabalho.

O carreiro, cheio de disposição, chegou cedo à casa do companheiro e tratou logo de carregar o carro com os pertences da família do Manuel Firmino que levaria para a Boa Esperança. Antes de começar, porém, verificou se os fueiros estavam ajustados e firmes na mesa e se a esteira estava bem amarrada aos fueiros, para que nada caísse durante a viagem serra acima. Era preciso que tudo chegasse direitinho ao seu destino.

Manuel Firmino, a mulher e os filhos, ainda pequenos, ajudaram a transportar os trecos até o carro de boi estacionado no terreiro. Toleba, sobre a mesa do carro, recebia de Manuel Firmino cada peça, que ia acomodando da melhor maneira possível, para que tudo coubesse em uma só viagem. É que gente da roça nunca tem muitas coisas a carregar, quando muda de pouso. Fogão, por exemplo, não se carrega, já que é uma peça moldada em tijolo e barro, fixado num canto da cozinha. A casa nova certamente teria também o seu. As camas são desmontáveis. Só um e outro móvel segue inteiro, sem partes, alojados com maestria na mesa do carro, de modo a caber tudo o que nele se transporta. A mesa da cozinha, por exemplo, foi colocada de pernas para cima, com os dois bancos acomodados entre elas. Por fim, sobre os poucos móveis rígidos, as roupas da família e os colchões, enchidos com capim e bem leves de levar. Por riba de tudo já arrumado, Toleba joga uma lona cáqui, já com algum puído na trama, amarrada bem firme com uma corda de juta, a fim de proteger a carga de poeira e chuva. As criações de terreiro – galinhas e patos – iam em gaiolas feitas de bambu e dependuradas nos fueiros laterais. Os dois capados roliços, cevados para o Natal daquele ano, foram colocados, sob protestos veementes, como é costume desses bichos, num espaço na traseira do carro, numa espécie de cercado improvisado, com piso de folhas de bananeira, para que não sujassem por demais o restante da carga. Mas o coleirinho do brejo cantador, bichinho da mais alta estima, era o próprio Manuel Firmino quem levava na mão desocupada da rédea, com todo o cuidado possível.

– Tudo certo, compadre Firmino? – pergunta o carreiro.

Manuel Firmino confirma que tudo está nos conformes e se prepara para deixar a casinha humilde onde morou até então com a mulher e os quatro filhos, dois meninos e duas meninas. Ainda ao sair, num gesto de agradecimento, como reverência, levantou o chapéu de palha em direção à casa que serviu de lar para eles durante tantos anos.

Um pouco mais cedo, ele já arriara os dois cavalos de que dispunha. Logo ajuda a mulher a montar no malhado e instala uma das filhas na garupa. Monta no piquira e puxa a outra filha para sua garupa, enquanto Toleba coloca os dois meninos menores sobre o assento frontal à mesa do carro. O carreiro mesmo vai a pé, candiando os bois morro acima. Os trechos planos são bem curtos. O mais que se faz é subir, e isso requer perícia e arte no conduzir os animais e a carga.

Atendendo seus aboios iniciais, os bois se põem em movimento, e começa a viagem.

– Vem, Dengoso! Vem, Bendito! Vamos, Maciste! Força, Noturno!

Ao mesmo tempo em que chama pelos bois, vibra o garruchão, que tine as argolas do chocalho. Era o sinal para começar a marcha.

Os dois meninos repetem os gritos do Toleba, no chamado dos bois, já transformando a mudança numa divertida aventura.

Aos primeiros metros percorridos, o carro começa a emitir o som choroso característico, produzido pelo atrito das peças de madeira com o eixo, que vai azeitado, de modo a produzir a melodia que o carreiro mais estima e que o identifica dentre os demais carros de boi que circulam pelas estradas de chão do interior. A dolência do canto estimula a marcha, abranda a dureza da lida, embala as pessoas que vão junto à comitiva em busca de novos desafios.

Daí a duas horas, a família já estará na outra casa, na outra fazenda, retomando a labuta de um ponto além do que deixara para trás. Tudo dentro dos planos da vida que se toca serenamente, feito marcha de carro de boi candiado com perícia e refinamento.

Imagem colhida na Internet (coisasdaroca.com).

O PORCO DE NATAL

Lembro-me, como se fosse ontem, de todas as peripécias que culminaram num Natal completamente diferente e cheio de fartura em nossa casa simples. Diferente de todos os outros. Por essa época, eu tinha quinze anos, quase completando dezesseis, e as imagens estão ainda bem nítidas em minha mente.

A história começou, quando meu pai resolveu levar o vizinho às barras dos tribunais, só porque um porco do outro, escapado do chiqueiro, deu de fuçar seu canteiro de alfaces e cebolinhas verdes. A cerca do quintal tinha um buraco perto do pé de jamelão e, por ali, o suíno adentrou seus domínios. Era ainda manhãzinha, quando ele notou o bicho lá, revirando tudo e comendo algumas cabeças de alface, temperadas com cebolinha. Fez xô, cué-cué, pegou uma vara e espantou o dito invasor.

Como era um homem quase sem instrução, procurou ajuda de quem conhecia os enigmáticos meandros da justiça: o prático de farmácia Aristeu dos Anjos, cuja ciência provinha do famoso Almanaque Biotônico Fontoura, de muitos méritos e informações. Aliás, Aristeu dos Anjos era especialista em tudo o que o tal almanaque veiculava: das fases da lua e do movimento das marés, à época propícia para a pesca e às infusões eficazes para as mais diversas doenças.

Aristeu, que jamais se fez de rogado nessas ocasiões, deitou sabença:

– Negócio de fuçação de porco não está contemplado na jurisprudência dos tribunais, seu Daniel. É da natureza do porcino. O bicho nasceu com essa predestinação. É preciso que ele tenha gerado um prejuízo atestado e comprovado, seu Daniel. Só fuçação não dá processo. É perca de tempo. É futucar juiz togado por ninharia, o que pode despertar o veneno do cargo contra sua pessoa e ainda piorar a situação. Desaconselho veementemente, seu Daniel.

Mas meu pai, Daniel Prudêncio – esse era o nome completo dele –, garantiu ao encorpado Aristeu da farmácia que o tal suíno lhe tinha comido várias cabeças de alface, para mais de cinco, acompanhadas de algumas moitas de cebolinha da horta.

– Bem, nesse caso, a indenização possa ser que chegue a uns dez mil réis, no máximo, o que não dá para pagar nem as custas do processo, quanto mais os honorários do causídico. É melhor deixar do jeito que está, seu Daniel. Releve o prejuízo. Procure fechar o buraco da cerca. Faça uma vistoria em todo contorno do quintal e fale com o vizinho para botar atenção nos seus capados. O senhor vai gastar chumbo grosso para caça pequena, seu Daniel.

Bem, se Aristeu dos Anjos, montado em toda aquela ciência almanaquista, disse, é porque, por baixo, devia de ser verdade, pensou papai, na sua simplicidade. Dada a conversa por encerrada, voltou aos nossos pobres domínios no entorno da vila, lá para os lados do valão Liberdade. Ao chegar a casa, encontrou o resto do canteiro de alfaces e cebolinhas comido, a terra toda revirada e o buraco da cerca ainda mais alargado. Muito contrariado, mas para não fazer besteira de que se arrependesse posteriormente, procurou o vizinho. O homem fez que ouviu e lhe garantiu que iria tomar as providências cabíveis para o caso da invasão indesejada. E de nada adiantaram os consertos da cerca. Sempre havia algum porco invadindo nosso quintal.

Até que um dia, já farto dos prejuízos e do pouco caso do dono dos capados, papai pegou pelas patas traseiras um leitãozinho já bem fornido de carnes e torresmos, chispes e bacon, arrastou-o para o lado oposto da casa, onde, de caso pensado, havia providenciado um cercadinho tosco e lá o deixou até a noite. Entradas as horas mortas, foi com um machado novo, comprado para o serviço, e arriou com vontade o olho da ferramenta no cabelouro do pobre coitado suíno, que desencarnou sem um grunhido. Depois correu com ele para dentro de casa, onde, com a ajuda da mamãe, especialista no assunto, providenciou o descarne do cadáver e o preparo de tripas e redanhas, de sangue e miúdos, de lombos e pernis, costelas e carrés, para a ceia do Natal que se aproximava.

Nossos natais eram sempre minguados. O que papai produzia em nossa pequena propriedade não dava para termos uma vida folgada. Vivíamos, mas sem maiores abastanças. Por isso é que todos ficamos felizes ao ver a faina dos dois, no preparo do leitãozinho sacrificado.

E foi assim que a família de seu Daniel Prudêncio, meu pai de muitos anos já nas costas, que nunca teve muita estima pela espécie abatida, passou seu Natal carnívoro: com o barulho dos dentes destroçando o pururucado da pele do bichinho, a gordura a escorrer por nossos queixos e dedos, todos nos fartando da infelicidade de um inocente leitão que, inadvertidamente, penetrou o microfúndio do meu estressado pai.

Deus haveria de ter complacência daquele espírito de porco, porque o corpo estava servido com farofa de ovo e arroz soltinho, tudo espalhado sobre a mesa, coberta com uma toalha quadriculada de vermelho e branco.

E nunca mais houve um Natal como aquele!

 (*Contraponto ao conto de Mário de Andrade, “O peru de Natal”, do livro Nós e o Natal.

Imagens colhidas na Internet.

Do meu livro Asfalto e mato, Clube de Autores, 2018)